domingo, 26 de maio de 2013

Sobre “bolsa-crack”, maioridade penal, morte do “Matemático” e assuntos correlatos.

O benefício só abrangerá usuários que procurem o tratamento voluntariamente, e cabe à clínica controlar o uso do dinheiro.
“O bom senso é a coisa mais bem distribuída do mundo: todos pensamos tê-lo em tal medida que até os mais difíceis de contentar nas outras coisas não costumam desejar mais bom senso do que já possuem” – René Descartes. 

O motivo de começar esse texto com uma citação tão entupida de sarcasmo e ironia publicada pelo famoso filósofo francês em 1637 (na obra “Discurso sobre o método”) é bem simples: falta-nos bom senso. Tenho visto em todos os lugares – principalmente nas redes sociais – pessoas revoltadas se manifestando sobre as últimas notícias a respeito da criminalidade. Os assuntos mais populares são, na ordem: 1) redução da maioridade penal; 2) morte do traficante “Matemático”; 3) auxílio-reclusão; 4) “bolsa-crack”. Quase todos os discursos seguem o mesmo padrão: exigem endurecimento na forma como tratamos os criminosos, acham absurdas as medidas atuais do governo e discutem a legislação vigente. É até engraçado ver como subitamente todos, sem exceção, tornaram-se PhD’s em direito. Abordarei os assuntos na mesma ordem. 1) Redução da maioridade penal: Circulam por aí quadros comparativos informando que a maioridade penal em diversos países é mais baixa do que no Brasil, e questionando por que o nosso país seria “o único correto” e “todos os demais países estariam errados”. Nelson Rodrigues chamaria isso de “síndrome de vira-latas”. O cidadão mal-informado, como era de se esperar, se convence facilmente por esse tipo de discurso e passa a repeti-lo. O problema é que a informação é falsa. Quem quer que tenha iniciado essa campanha agiu de má-fé e propositalmente confundiu o conceito de maioridade penal com o de responsabilidade penal, que são coisas distintas. No Brasil temos maioridade penal aos 18 anos e responsabilidade penal aos 12, que é a idade a partir da qual um jovem pode passar por “medidas socioeducativas” – o que inclui internação, que nada mais é do que um termo maquiado para encarceramento em uma prisão juvenil. A Youth Justice Board, órgão público do Reino Unido, possui um relatório bem interessante sobre a maioridade penal nos diversos países, incluindo uma tabela comparativa que pode ser encontrada na página 35. A responsabilidade penal está listada no mesmo link, na página 30. O Ministério Público do estado do Paraná também possui um site destinado a comparar as idades de maioridade e responsabilidade penal nos diversos países. Como qualquer um pode conferir com base nas referências, as campanhas pela redução da maioridade penal que comparam a nossa legislação com a de diversos países são extremamente mentirosas. Mas vamos assumir que, apesar de serem falsos todos os dados que os recém-PhD’s em direito formados nas redes sociais usam para embasar suas posições, o Brasil ainda considere a ideia de reduzir a maioridade penal. As prisões brasileiras possuem um déficit de 240.000 vagas. Pretendemos colocar ainda mais gente na cadeia? 40% desses presos são provisórios e muitos, inocentes, sofrem com as condições sub-humanas das nossas prisões e acabam com sequelas irreversíveis. Não são incomuns casos de inocentes que apanharam ou foram estuprados e ainda sofrem com as consequências. Talvez os adeptos da redução da maioridade penal pretendam resolver o déficit de vagas colocando aqueles que infringem a lei em contêineres, como já ocorreu no Pará e no Espírito Santo. Além disso, a reincidência dos menores que já foram internados chega a 80% em alguns lugares do nosso país, o que é muito alto e mostra como a ideia de colocar todo mundo na cadeia é tresloucada. A proposta do senso comum é usar a lei e o estado como uma chantagem contra o contraventor: “se você transgredir a lei, vai pra cadeia”. Só que colocá-lo na cadeia com a nossa estrutura carcerária atual estimula o menor a infringir a lei novamente. Em outras palavras: pôr os menores na prisão não resulta em nenhum benefício para o restante da sociedade. E se eles sofressem penas da mesma forma e intensidade que os adultos? A reincidência de criminosos adultos também é incrivelmente alta, de 70%.
Além do mais, Qual seria o critério para estabelecer a nova idade de maioridade penal? Vejo muitos defendendo que a redução seja para dezesseis anos, mas sem nenhuma justificativa objetiva para isso. Por que não dezessete? Por que não quinze? E catorze? Qual será o critério para determinar a idade? É um critério objetivo ou se baseia somente em “achismos”? Quem nos garante que com a redução da maioridade penal para, por exemplo, dezesseis anos, os chefes de gangues não começariam a cooptar adolescentes ainda mais jovens para o crime? Por ironia, países em que as prisões são mais humanas conseguem reabilitar boa parte dos seus presos. É o caso da Noruega, que recupera 80% da população carcerária (só tem 20% de reincidência). Existe uma diferença de mentalidade entre eles e nós: lá as prisões servem para fazer bem à sociedade, e não para fazer mal a um indivíduo que parte da população considerou “indesejável”. “Mas então devemos deixar esses menores matando por aí, certos de que não haverá punição?”, vocifera o “cidadão de bem” indignado. Claro que não. Para começar, entre 70% e 80% dos crimes praticados por menores são contra o patrimônio. Eles estão pichando muros e furtando, não matando. Só 11,6% cometem crimes contra a vida (homicídio, por exemplo). E, independente de qual seja a infração ou crime que cometam, eles devem ser punidos. Só não devemos nos deixar levar por um sentimento generalizado de vingança social quando discutirmos as punições. Até hoje ninguém forneceu um único argumento a favor da diminuição da maioridade penal que não se baseasse em algum tipo de vingança contra o infrator. É sempre a repetição das mesmas frases: “e se fosse com você e com sua família?” (e quem disse que nunca me aconteceu?), “não podemos deixar eles soltos” (como se a única forma de punição legalmente prevista fosse cadeia – serviço comunitário é punição, multa é punição…), “eles precisam ser punidos” (sendo que o propósito social do sistema carcerário não é punir, e sim reabilitar), e assim por diante. O único discurso que vejo não se basear em vingança é “se podem votar aos 16 anos, por que não poderiam responder criminalmente?”. Embora persuasivo, esse questionamento tem tanta validade quanto perguntar: “se a bicicleta é vermelha, por que o chocolate não é salgado?”. Misturam categorias diferentes. 2) Morte do traficante “Matemático”: Não foi por acaso que escolhi uma citação de René Descartes, famoso matemático, para iniciar esse texto. Mas deixemos o sarcasmo de lado. Recentemente uma conhecida rede de televisão divulgou um vídeo sobre uma operação policial ocorrida um ano atrás, na qual um perigoso traficante foi morto por policiais que efetuaram disparos a partir de um helicóptero.
Aqueles que pedem o embrutecimento do estado alegam que é função do policial eliminar elementos nocivos à sociedade, principalmente se houver resistência à prisão. Embora eu concorde que se houver resistência à voz de prisão o policial pode (e deve) usar a força, não necessariamente essa força deve ser letal. Só se deve usar força letal se o suspeito apresentar risco à vida do agente ou de terceiros. Não foi o caso nesta situação. Os policiais atiraram primeiro e sequer havia como darem voz de prisão pois estavam no alto, em um helicóptero. Não estavam reagindo, pois os suspeitos só atiraram depois da primeira salva vinda do helicóptero da polícia. Foi uma execução sumária. Considere-se ainda como agravante o fato de que os policiais distribuíram disparos a esmo em uma área densamente habitada como se fossem personagens em um jogo de videogame. Qualquer praticante de tiro sabe que toda munição disparada representa um risco, ela irá atingir algo. Se esse “algo” é um objeto inanimado ou uma pessoa é onde reside a diferença entre um tiro que errou e uma bala perdida que ceifou a vida de alguém. Além disso, nunca foi função do policial eliminar criminosos. A população trata a polícia como um grupo organizado de capatazes, jagunços ou capitães-do-mato que possuem a função de “nos” proteger (os “humanos direitos”) “deles” (os “bandidos”). Não é assim que funciona, a coisa não é preto-no-branco. Essa não é nem nunca foi a função do policial, e no dia em que passar a ser ele será exatamente igual a qualquer gângster comum. Infelizmente, por falta de formação, alguns policiais absorvem esse discurso do senso comum e não só já agem assim, como propagam esse modo de pensar aos quatro ventos. Não são incomuns casos de cidadãos confundidos com criminosos e executados pela nossa polícia extremamente mal-treinada. Provavelmente poucos ainda se lembram do caso do menino João Roberto, que morreu após ter sido atingido por um tiro quando a polícia abriu fogo contra o carro de sua mãe. Há ainda o caso de Hélio Ribeiro, morador do Morro do Andaraí, que foi morto quando um policial confundiu sua furadeira com uma arma de fogo. E o que dizer sobre o também menino Juan Moraes, que foi assassinado por policiais que ainda tentaram esconder seu corpo? Esses são só alguns casos dentre vários que se repetem diariamente Brasil afora. Não podemos permitir que a polícia aplique penas sumárias sem que os suspeitos sejam julgados pelo simples fato de que isso implodiria nossa sociedade por quebrar a divisão entre os três poderes (executivo, legislativo e judiciário). A polícia é um dos braços do executivo, não cabe a ela o papel tríplice de julgar, determinar e aplicar penas. Julgar e determinar penas é função do judiciário. Muitos inocentes morrerão se invertermos os papéis. Precisamos de uma polícia eficiente, bem treinada e bem equipada, mas a função dela não é caçar bandidos e abatê-los. Sua função é levá-los ao judiciário. Uma polícia embrutecida e que ministra a violência da forma que quiser, sem nada que a regulamente, não é muito diferente de uma gangue. Estão dizendo, sobre a morte do “Matemático”, que é menos um. A verdade é que o mataram sem mais nem menos. 3) Auxílio-reclusão ou “bolsa-bandido”: Aparentemente nenhuma das pessoas que protestaram contra isso se deu ao trabalho de verificar as regras da previdência social em relação ao auxílio-reclusão. Trata-se de um benefício destinado aos dependentes do preso, não a ele próprio. Isso significa que se um pai de família for preso por um motivo qualquer, sua esposa e seu filho não passarão fome e não terão de entrar na criminalidade para se sustentarem. E o benefício é válido apenas para presos que estavam contribuindo com o INSS no momento da prisão. “Mas que criminoso contribui com o INSS?”, pergunta o “cidadão de bem”. Exato: o benefício não se destina a criminosos contumazes (os “bandidos profissionais”), mas a pessoas comuns, com empregos, com dependentes, que porventura acabem cometendo algum crime e sejam presas por isso. Além disso, o valor recebido é determinado com base no salário-base de contribuição, e não é necessariamente maior do que o salário mínimo – se o preso sempre contribuiu com um valor equivalente ao salário mínimo, sua família receberá este valor. Se ele contribuiu com mais, há um limite para o valor do auxílio – quem ganhava salários altos antes de ser preso não tem direito ao auxílio-reclusão. É interessante ver como o brasileiro sempre reclama que a lei não é cumprida, mas quando o governo decide cumprir as leis atribuem ao fenômeno um nome falacioso qualquer e demonstram resistência à ideia. O uso de drogas hoje é visto no país como uma doença e, apesar de ainda ser crime (vide artigos 28 a 30 da lei 11.343/2006), não cabe mais a reclusão em presídio. O cartão-recomeço, que foi apelidado de “bolsa crack”, é a previsão legal (artigos 20 a 26 da referida lei) de que o governo deve implementar políticas públicas para tratamento dos usuários de drogas. Novamente, a maioria das pessoas não se deu ao trabalho de procurar saber que o cartão se destina ao pagamento de clínicas para o tratamento do dependente químico, e nem o usuário de drogas e nem a família dele terão acesso ao dinheiro. O benefício só abrangerá usuários que procurem o tratamento voluntariamente, e cabe à clínica controlar o uso do dinheiro e a frequência do dependente químico no tratamento, pois é ela que ficará em posse do cartão. Se o temor do “cidadão de bem” é que o dinheiro do contribuinte seja usado para comprar drogas e a pessoa afunde ainda mais no vício, esse cidadão é um idiota que sequer procura uma informação antes de enunciar seu julgamento a respeito. Então, após tantas críticas, como resolver o problema da criminalidade? Não é tarefa simples. Todas as posições dantescas que vemos serem defendidas pelos especialistas em segurança pública formados em redes sociais se baseiam justamente na simplificação absurda de um problema altamente complexo. É necessário aumentar a eficiência do judiciário, construir novos presídios – bem equipados e organizados, como os Noruegueses – para suprir o déficit de vagas e treinar a polícia para que execute sua função apropriadamente. Com a primeira medida, teríamos um desafogamento dos presos provisórios e decisões mais céleres que retirassem de circulação os criminosos realmente perigosos. Com a segunda, teríamos presídios que efetivamente recuperassem os presos ao invés de piorá-los, diminuindo a reincidência. Com a terceira, passaríamos a ter medo apenas dos criminosos, e não temeríamos cruzar o caminho de algum policial que pensa estar em uma zona de guerra. E qual a razão de tantas pessoas defenderem sandices quando o assunto é segurança pública? Em parte, creio que o problema esteja com a venda casada de ideologias, assunto que abordei em ocasião anterior. O brasileiro mediano é tão desesperado para se encaixar em um grupo social qualquer que voluntariamente abre mão de seu raciocínio crítico assim que se apresenta a oportunidade, sucumbindo a falsas dicotomias e maniqueísmo tolo. Se você criticar uma ação da polícia, é porque “é contra a polícia” e, consequentemente, “é a favor dos bandidos”. Foi assim que surgiu o trocadilho imbecil de qualificar como “defensor dos direitos dos manos” qualquer um que critique a forma como o sistema penal ou o carcerário funcionam no nosso país. Como afirmou um leitor, as pessoas tendem a terceirizar o seu pensamento ao invés de coletarem informações e formularem uma opinião própria. Em resumo: falta-nos bom senso. Mesmo que julguemos que já o possuímos em quantidade suficiente. Agradeço a Vinícius Arena por indicar as leis referentes ao quarto tópico abordado.

DAVID G. BORGES - colunista do site Enfu.

Fonte: Revista Central

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